Artigo na Revista Dia D (27 Out 06)
O Acaso Não Faz os Grandes Líderes
Nuno Garoupa
O tempo de Tony Blair chegou ao fim e um novo ciclo político começará na Grã-Bretanha. Aos politicólogos e aos historiadores competirá fazer uma análise desapaixonada dos dez anos de governo Blair. O que não oferece dúvidas é que a Grã-Bretanha em trinta anos produziu dois líderes com uma craveira e uma genialidade ímpar. Tony Blair e Margaret Thatcher são referências obrigatórias da política, da sociologia, da economia e da história britânica, europeia e mundial.
Não falo do óbvio, isto é, da influência que tiveram nas políticas interna e externa (incluindo europeia) derivada da posição do primeiro-ministro inglês na arquitectura constitucional britânica e da importância da Grã-Bretanha no mundo geopolítico de hoje. Falo sim do impacto transcendental que tiveram nas profundíssimas transformações da sociedade britânica (sem paralelo na Europa nos últimos trinta anos); da influência ideológica que exerceram na direita (o desenvolvimento do pensamento liberal em detrimento do conservadorismo tradicional) e na esquerda (na criação da terceira via que definitivamente enterrou o velho socialismo democrático) em toda a Europa; na construção de novas políticas públicas e do Estado-regulador na saúde, na educação, na justiça, na economia que contra tradições seculares teve uma repercussão enorme deste lado do Canal da Mancha.
Não pode ser apenas coincidência que o mesmo país tenha produzido dois líderes deste nível sem paralelo na Europa em apenas uma geração. Mesmo à nossa reduzida dimensão e com os condicionalismos históricos que tivemos, a nossa democracia foi incapaz de produzir um líder com o calibre intelectual e ideológico de Thatcher ou Blair. Não é, não pode ser obra do acaso.
Curiosamente quer Thatcher quer Blair são produtos do aparelho partidário, foram ascendendo pela hierarquia dos respectivos partidos da forma que é habitual, não tiveram qualquer experiência profissional relevante fora da vida política. Nada de “salvadores da pátria”, de políticos que não são políticos, de entradas em directo para a liderança partidária ou para o Conselho de Ministros. Thatcher e Blair são daqueles políticos profissionais abominados pelos nossos intelectuais, dos que colaram cartazes, foram derrotados em eleições locais, tiveram de ir a reuniões das concelhias, enfim tiveram de passar por tudo isso que em Portugal é visto de forma negativa e pejorativa como actividades do aparelho partidário.
O problema não está pois em ter políticos profissionais nas lideranças partidárias (como alguns articulistas escrevem de vez em quando), mas nos aparelhos partidários que temos. É que os aparelhos dos partidos britânicos pelas suas tradições, regras, democraticidade, descentralização por um lado, e a supremacia do parlamentarismo (a liderança está sujeita ao grupo parlamentar e não o contrário como em Portugal), por outro, conjugam-se num sistema mais aberto, mais competitivo e mais dinâmico. As catarses dos conservadores e dos trabalhistas na oposição que eventualmente levaram Thatcher e Blair ao poder anos mais tarde não têm qualquer semelhança com as tímidas renovações que se fizeram no PS ou no PSD. No fundo, os aparelhos políticos em Portugal sofrem do mesmo problema que muitos sectores da economia portuguesa, isto é, oligopólios dominantes com as habituais consequências negativas na inovação e na qualidade do produto que vendem. Só que no caso dos partidos políticos o produto final é a democracia.
Não pode haver democracia de qualidade sem think-tanks. Quer Thatcher quer Blair tiveram um suporte ideológico de alto capital humano que só foi possível graças aos múltiplos institutos que estudaram, analisaram e estruturaram um programa político de médio e longo prazo. Nada disto existe ou é feito em Portugal. Pura e simplesmente não temos think-tanks (o que para aí usa esse nome deveria ser castigado por publicidade enganosa). Penso que a razão mais básica para isso é o facto dos poderes económicos e sociais em Portugal estarem demasiado preocupados com os seus interesses de curtíssimo prazo para financiar projectos a longo prazo. O resultado está à vista: as elites partidárias não pecam por excesso de capital humano, os programas eleitorais são bastante medíocres, e cada ministro tem de começar do zero quando é nomeado.
Que dificilmente o nosso sistema político-partidário produzirá um Blair ou uma Thatcher é algo que temos de aceitar... Mas que tenhamos de oscilar entre um Major e um Callaghan (os típicos líderes cinzentos em fim de festa), ou um Wilson e um Heath (ambos estimáveis reformistas à esquerda e à direita respectivamente como tem havido em Portugal mas que não fizeram história) é uma fatalidade dos aparelhos partidários fechados que não promovem qualidade e inovação em políticas públicas.
Nuno Garoupa
O tempo de Tony Blair chegou ao fim e um novo ciclo político começará na Grã-Bretanha. Aos politicólogos e aos historiadores competirá fazer uma análise desapaixonada dos dez anos de governo Blair. O que não oferece dúvidas é que a Grã-Bretanha em trinta anos produziu dois líderes com uma craveira e uma genialidade ímpar. Tony Blair e Margaret Thatcher são referências obrigatórias da política, da sociologia, da economia e da história britânica, europeia e mundial.
Não falo do óbvio, isto é, da influência que tiveram nas políticas interna e externa (incluindo europeia) derivada da posição do primeiro-ministro inglês na arquitectura constitucional britânica e da importância da Grã-Bretanha no mundo geopolítico de hoje. Falo sim do impacto transcendental que tiveram nas profundíssimas transformações da sociedade britânica (sem paralelo na Europa nos últimos trinta anos); da influência ideológica que exerceram na direita (o desenvolvimento do pensamento liberal em detrimento do conservadorismo tradicional) e na esquerda (na criação da terceira via que definitivamente enterrou o velho socialismo democrático) em toda a Europa; na construção de novas políticas públicas e do Estado-regulador na saúde, na educação, na justiça, na economia que contra tradições seculares teve uma repercussão enorme deste lado do Canal da Mancha.
Não pode ser apenas coincidência que o mesmo país tenha produzido dois líderes deste nível sem paralelo na Europa em apenas uma geração. Mesmo à nossa reduzida dimensão e com os condicionalismos históricos que tivemos, a nossa democracia foi incapaz de produzir um líder com o calibre intelectual e ideológico de Thatcher ou Blair. Não é, não pode ser obra do acaso.
Curiosamente quer Thatcher quer Blair são produtos do aparelho partidário, foram ascendendo pela hierarquia dos respectivos partidos da forma que é habitual, não tiveram qualquer experiência profissional relevante fora da vida política. Nada de “salvadores da pátria”, de políticos que não são políticos, de entradas em directo para a liderança partidária ou para o Conselho de Ministros. Thatcher e Blair são daqueles políticos profissionais abominados pelos nossos intelectuais, dos que colaram cartazes, foram derrotados em eleições locais, tiveram de ir a reuniões das concelhias, enfim tiveram de passar por tudo isso que em Portugal é visto de forma negativa e pejorativa como actividades do aparelho partidário.
O problema não está pois em ter políticos profissionais nas lideranças partidárias (como alguns articulistas escrevem de vez em quando), mas nos aparelhos partidários que temos. É que os aparelhos dos partidos britânicos pelas suas tradições, regras, democraticidade, descentralização por um lado, e a supremacia do parlamentarismo (a liderança está sujeita ao grupo parlamentar e não o contrário como em Portugal), por outro, conjugam-se num sistema mais aberto, mais competitivo e mais dinâmico. As catarses dos conservadores e dos trabalhistas na oposição que eventualmente levaram Thatcher e Blair ao poder anos mais tarde não têm qualquer semelhança com as tímidas renovações que se fizeram no PS ou no PSD. No fundo, os aparelhos políticos em Portugal sofrem do mesmo problema que muitos sectores da economia portuguesa, isto é, oligopólios dominantes com as habituais consequências negativas na inovação e na qualidade do produto que vendem. Só que no caso dos partidos políticos o produto final é a democracia.
Não pode haver democracia de qualidade sem think-tanks. Quer Thatcher quer Blair tiveram um suporte ideológico de alto capital humano que só foi possível graças aos múltiplos institutos que estudaram, analisaram e estruturaram um programa político de médio e longo prazo. Nada disto existe ou é feito em Portugal. Pura e simplesmente não temos think-tanks (o que para aí usa esse nome deveria ser castigado por publicidade enganosa). Penso que a razão mais básica para isso é o facto dos poderes económicos e sociais em Portugal estarem demasiado preocupados com os seus interesses de curtíssimo prazo para financiar projectos a longo prazo. O resultado está à vista: as elites partidárias não pecam por excesso de capital humano, os programas eleitorais são bastante medíocres, e cada ministro tem de começar do zero quando é nomeado.
Que dificilmente o nosso sistema político-partidário produzirá um Blair ou uma Thatcher é algo que temos de aceitar... Mas que tenhamos de oscilar entre um Major e um Callaghan (os típicos líderes cinzentos em fim de festa), ou um Wilson e um Heath (ambos estimáveis reformistas à esquerda e à direita respectivamente como tem havido em Portugal mas que não fizeram história) é uma fatalidade dos aparelhos partidários fechados que não promovem qualidade e inovação em políticas públicas.
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