A Constituição e os Males Portugueses (Revista Atlântico)
Comemoraram-se os trinta anos da Constituição Portuguesa entre os elogios habituais do establishment e verdadeiramente sentidos dos pais da Constituição (como não temos founding fathers arranjamos uns senhores que são os supostos mentores do texto constitucional), e a crítica de quem vê no texto constitucional a fonte dos males económicos que nos afligem (o coito do monstro como alguém lhe chamou). Para além dos colóquios académicos para a elite e a sessão comemorativa no Parlamento, a verdade é que a data passou sem glória.
Presumo que parte da história se deve a que celebramos trinta anos da Constituição sem sabermos muito bem que texto constitucional se comemora. Evidentemente que não pode ser o de 1976 pois este parece hoje totalmente desajustado da realidade económica, política e social em que vivemos. O problema é que já estava bastante desajustado em 1976 quando foi aprovado por essa larga maioria de deputados constituintes que contudo não tiveram a coragem de sujeitar o texto a referendo como fizeram os espanhóis. Nunca foi, e não era em 1976, a tal Constituição entre as mais avançadas do mundo (essa demagogia populista que se proclama ainda hoje desde as cátedras da matéria), mas sim um documento tipicamente terceiro-mundista que pugnava por um modelo então já claramente desajustado da Europa económica e social. Hoje fingimos colectivamente que só descobrimos isso nos anos 80 (lembremos que foi em 1989 quando o muro de Berlim estava em vésperas de cair). Bastava olhar à nossa volta na Europa e no mundo de então para perceber que a via para o socialismo levava pelo menos vinte e cinco anos de atraso. Têm vergonha muitos de admitir hoje que a ser aplicada efectivamente a Constituição de 1976 seríamos uma Cuba, mas isso apenas demonstra a loucura que era esse texto constitucional.
Comemorar os trinta anos da Constituição é no fundo institucionalizar a esquizofrenia em que vivemos. É e não é a mesma Constituição de 1976. A grande maioria do bloco central, que votou o “é” em 1976 e o “não é” nas revisões posteriores (a grande maioria dos interesses instalados no Estado e na sociedade portuguesa) pretende o equilíbrio impossível entre o compromisso de 1976 (onde explicitamente e de forma bastante cândida se pretendia eliminar o capitalismo em Portugal) e a dinâmica do mundo globalizado (profundamente capitalista). Nesse sentido, o pecado original da Constituição Portuguesa é a sua extensão e hiper-rigidez, uma tentativa vã do legislador constituinte de parar no tempo e no espaço. E se as reformas constitucionais expurgaram o texto do modelo marxista subjacente ao texto de 1976, elas não eliminaram o pecado original. Uma Constituição que é reformada cada cinco anos só pode significar que tem um desajustamento contínuo, sustentado e permanente com a realidade económica, política e social que pretende regular. A economia, a sociedade e a política mudam sempre mais rapidamente que a Constituição.
Sou daqueles que entende que a Constituição Portuguesa é um verdadeiro anacronismo histórico que dificilmente se libertará do pecado original. Mas não tenho a opinião de que o texto da Constituição seja um óbice ao nosso desenvolvimento económico, e muito menos a causa dos nossos males orçamentais e financeiros actuais. Evidentemente que numa ou noutra questão pontual podemos encontrar na Constituição a desculpa ou o óbice para determinadas políticas que eventualmente poderiam produzir resultados distintos ao que temos. Mas na generalidade acho que o problema não está no texto constitucional, mas sim naquilo que ele próprio simboliza.
Suponhamos que a Constituinte de 1975 saía de um processo de transição à espanhola, sem PREC nem vanguardas terceiro-mundistas, mas com a participação activa da esquerda e uma direita diminuída e complexada com a herança política. Provavelmente teríamos um texto semelhante à Constituição espanhola que vigora desde 1978 (este sim referendado pelo povo e sem reformas nos últimos vinte e oito anos). Faria alguma diferença?
Sinceramente acho que não. Desde logo porque as reformas políticas, sociais e económicas que permitiram à Espanha um modelo de crescimento sustentável não foram feitas em Portugal fundamentalmente por falta de vontade política e não por impedimento constitucional. Estas reformas não se fizeram nos anos 80 e 90 porque os eleitores preferiram sempre votar em quem lhes ofereceu crescimento baseado em consumo e falso sentido de bem-estar económico em detrimento de investimento e reforma económica, lazer em vez de trabalho.
A política económica e orçamental seguida em Espanha nos últimos vinte e cinco anos era perfeitamente compatível com a nossa Constituição. Em contrapartida, os exemplos habituais que os críticos da Constituição oferecem e que regularmente se vê citados nos artigos de opinião (por exemplo, o excesso de intervenção do Estado na educação, na saúde, na justiça, ou a rigidez da administração pública, ou ainda a desconfiança em relação ao sector privado e ao funcionamento da economia de mercado) são grosso modo idênticas ao texto espanhol (título I e título VII) e muito semelhantes ao estatut da Catalunha aprovado recentemente (título I e título VI). Entre a Constituição que temos desde 1989 (é verdade que levámos duas revisões constitucionais para lá chegar) e a que têm os espanhóis não encontro diferenças substantivas que justifiquem a ideia de que o documento fundamental do ordenamento jurídico português é o grande travão ao nosso desenvolvimento económico. A responsabilidade cabe à elite dirigente (e aos portugueses que lhes votaram) e não ao legislador constituinte (exonero pois os pais da Constituição de qualquer responsabilidade na situação actual).
O problema não está no texto constitucional, mas na lógica original subjacente, na sua extensão, no detalhe e no pormenor, na sua ânsia centralizadora e dirigista. Ela corresponde a uma caracterização cultural, sociológica e antropológica dos portugueses, ela no fundo responde a uma sociedade contrária a uma economia de mercado, ao risco e ao investimento, que sempre desconfia do indivíduo e enaltece o Estado, não o Estado-regulador mas o Estado-paternalista. Historicamente o capitalismo é um transplante na sociedade portuguesa. A Constituição é apenas o ponto focal, o símbolo dessa filosofia antiliberal que sempre imperou nas elites portuguesas ao longo dos últimos duzentos anos.
Por isso a actual Constituição se aproxima tanto da Constituição de 1933, ambas claramente dirigistas, estatizantes e fundamentalmente antiliberais. Notavelmente nem em 1933, nem em 1976, nem em 1989, nem hoje existe qualquer direito à concorrência ou qualquer obrigação constitucional de abolir os monopólios. E o Tribunal Constitucional, como bom intérprete do pensamento e da tradição portuguesa, tem uma jurisprudência que se limita a valorizar sempre mais a intervenção do Estado que as decisões do indivíduo, sempre mais preocupado com questões redistributivas do que com o bom funcionamento dos mercados.
O anacronismo histórico da Constituição é de 1976, mas o seu simbolismo insere-se perfeitamente nos últimos duzentos anos. Elevar a Constituição de 1976 a responsável desse paradigma antiliberal é um erro porque confundimos a mensagem com o remetente. No fundo, a Constituição representa muito mais que o compromisso de 1976 e é muito menos prisioneira dos acontecimentos históricos que lhe deram origem. Ela é substancialmente um símbolo do pensamento dominante na elite portuguesa. E se não queremos ou não podemos mudar esse pensamento, então não vale a pena bater mais na Constituição.
Presumo que parte da história se deve a que celebramos trinta anos da Constituição sem sabermos muito bem que texto constitucional se comemora. Evidentemente que não pode ser o de 1976 pois este parece hoje totalmente desajustado da realidade económica, política e social em que vivemos. O problema é que já estava bastante desajustado em 1976 quando foi aprovado por essa larga maioria de deputados constituintes que contudo não tiveram a coragem de sujeitar o texto a referendo como fizeram os espanhóis. Nunca foi, e não era em 1976, a tal Constituição entre as mais avançadas do mundo (essa demagogia populista que se proclama ainda hoje desde as cátedras da matéria), mas sim um documento tipicamente terceiro-mundista que pugnava por um modelo então já claramente desajustado da Europa económica e social. Hoje fingimos colectivamente que só descobrimos isso nos anos 80 (lembremos que foi em 1989 quando o muro de Berlim estava em vésperas de cair). Bastava olhar à nossa volta na Europa e no mundo de então para perceber que a via para o socialismo levava pelo menos vinte e cinco anos de atraso. Têm vergonha muitos de admitir hoje que a ser aplicada efectivamente a Constituição de 1976 seríamos uma Cuba, mas isso apenas demonstra a loucura que era esse texto constitucional.
Comemorar os trinta anos da Constituição é no fundo institucionalizar a esquizofrenia em que vivemos. É e não é a mesma Constituição de 1976. A grande maioria do bloco central, que votou o “é” em 1976 e o “não é” nas revisões posteriores (a grande maioria dos interesses instalados no Estado e na sociedade portuguesa) pretende o equilíbrio impossível entre o compromisso de 1976 (onde explicitamente e de forma bastante cândida se pretendia eliminar o capitalismo em Portugal) e a dinâmica do mundo globalizado (profundamente capitalista). Nesse sentido, o pecado original da Constituição Portuguesa é a sua extensão e hiper-rigidez, uma tentativa vã do legislador constituinte de parar no tempo e no espaço. E se as reformas constitucionais expurgaram o texto do modelo marxista subjacente ao texto de 1976, elas não eliminaram o pecado original. Uma Constituição que é reformada cada cinco anos só pode significar que tem um desajustamento contínuo, sustentado e permanente com a realidade económica, política e social que pretende regular. A economia, a sociedade e a política mudam sempre mais rapidamente que a Constituição.
Sou daqueles que entende que a Constituição Portuguesa é um verdadeiro anacronismo histórico que dificilmente se libertará do pecado original. Mas não tenho a opinião de que o texto da Constituição seja um óbice ao nosso desenvolvimento económico, e muito menos a causa dos nossos males orçamentais e financeiros actuais. Evidentemente que numa ou noutra questão pontual podemos encontrar na Constituição a desculpa ou o óbice para determinadas políticas que eventualmente poderiam produzir resultados distintos ao que temos. Mas na generalidade acho que o problema não está no texto constitucional, mas sim naquilo que ele próprio simboliza.
Suponhamos que a Constituinte de 1975 saía de um processo de transição à espanhola, sem PREC nem vanguardas terceiro-mundistas, mas com a participação activa da esquerda e uma direita diminuída e complexada com a herança política. Provavelmente teríamos um texto semelhante à Constituição espanhola que vigora desde 1978 (este sim referendado pelo povo e sem reformas nos últimos vinte e oito anos). Faria alguma diferença?
Sinceramente acho que não. Desde logo porque as reformas políticas, sociais e económicas que permitiram à Espanha um modelo de crescimento sustentável não foram feitas em Portugal fundamentalmente por falta de vontade política e não por impedimento constitucional. Estas reformas não se fizeram nos anos 80 e 90 porque os eleitores preferiram sempre votar em quem lhes ofereceu crescimento baseado em consumo e falso sentido de bem-estar económico em detrimento de investimento e reforma económica, lazer em vez de trabalho.
A política económica e orçamental seguida em Espanha nos últimos vinte e cinco anos era perfeitamente compatível com a nossa Constituição. Em contrapartida, os exemplos habituais que os críticos da Constituição oferecem e que regularmente se vê citados nos artigos de opinião (por exemplo, o excesso de intervenção do Estado na educação, na saúde, na justiça, ou a rigidez da administração pública, ou ainda a desconfiança em relação ao sector privado e ao funcionamento da economia de mercado) são grosso modo idênticas ao texto espanhol (título I e título VII) e muito semelhantes ao estatut da Catalunha aprovado recentemente (título I e título VI). Entre a Constituição que temos desde 1989 (é verdade que levámos duas revisões constitucionais para lá chegar) e a que têm os espanhóis não encontro diferenças substantivas que justifiquem a ideia de que o documento fundamental do ordenamento jurídico português é o grande travão ao nosso desenvolvimento económico. A responsabilidade cabe à elite dirigente (e aos portugueses que lhes votaram) e não ao legislador constituinte (exonero pois os pais da Constituição de qualquer responsabilidade na situação actual).
O problema não está no texto constitucional, mas na lógica original subjacente, na sua extensão, no detalhe e no pormenor, na sua ânsia centralizadora e dirigista. Ela corresponde a uma caracterização cultural, sociológica e antropológica dos portugueses, ela no fundo responde a uma sociedade contrária a uma economia de mercado, ao risco e ao investimento, que sempre desconfia do indivíduo e enaltece o Estado, não o Estado-regulador mas o Estado-paternalista. Historicamente o capitalismo é um transplante na sociedade portuguesa. A Constituição é apenas o ponto focal, o símbolo dessa filosofia antiliberal que sempre imperou nas elites portuguesas ao longo dos últimos duzentos anos.
Por isso a actual Constituição se aproxima tanto da Constituição de 1933, ambas claramente dirigistas, estatizantes e fundamentalmente antiliberais. Notavelmente nem em 1933, nem em 1976, nem em 1989, nem hoje existe qualquer direito à concorrência ou qualquer obrigação constitucional de abolir os monopólios. E o Tribunal Constitucional, como bom intérprete do pensamento e da tradição portuguesa, tem uma jurisprudência que se limita a valorizar sempre mais a intervenção do Estado que as decisões do indivíduo, sempre mais preocupado com questões redistributivas do que com o bom funcionamento dos mercados.
O anacronismo histórico da Constituição é de 1976, mas o seu simbolismo insere-se perfeitamente nos últimos duzentos anos. Elevar a Constituição de 1976 a responsável desse paradigma antiliberal é um erro porque confundimos a mensagem com o remetente. No fundo, a Constituição representa muito mais que o compromisso de 1976 e é muito menos prisioneira dos acontecimentos históricos que lhe deram origem. Ela é substancialmente um símbolo do pensamento dominante na elite portuguesa. E se não queremos ou não podemos mudar esse pensamento, então não vale a pena bater mais na Constituição.
1 Comments:
Obrigada pelo texto.
Para terminar um trabalho de mestrado só faltava um texto crítico...
Continue o bom trabalho.
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