Artigo Publicado no Público sobre o Simplex (31 Mar 06)
Teste Simplex ou Complex?
A burocratização da desburocratização
João Caupers e Nuno Garoupa
Professores Catedráticos da Universidade Nova de Lisboa
É extraordinário como velhas máximas vão perdurando no tempo, mesmo quando o respectivo contexto parece repeli-las. Diz-se que governo que quer desburocratizar começa por criar uma comissão (e dotá-la de funcionários, instalações, automóveis, etc., é claro). Vem isto a propósito do teste simplex, incluído no pacote de modernização administrativa.
A ideia, generosa e progressista, seria introduzir entre nós a avaliação de impacto prospectivo na produção legislativa. Depois de anos a batalhar e a trabalhar este tema em múltiplas actividades de investigação e divulgação, pensámos que, finalmente, o Governo reconhecia a necessidade de proceder à racionalização da produção legislativa.
Não havendo entre nós uma cultura de avaliação legislativa, a opção pela introdução de instrumentos técnicos parece-nos um passo muito importante, que apenas peca por tardio. O anúncio de que o modelo utilizado se baseia nas melhores práticas em vigor (página 13 do Relatório Simplex), nomeadamente o modelo belga e os testes de regulatory impact assessment utilizados no Reino Unido, deixou-nos numa expectativa muito agradável. Até sermos confrontados com o teste simplex.
Começa porque o teste simplex, na versão publicada pelo Relatório Simplex (páginas 74 a 89), é tudo menos simples. Trata-se, na verdade, de um exercício pesadamente burocrático, de quinze páginas e mais de quarenta perguntas, numa versão de inquérito de respostas múltiplas, que o Governo justifica pela ausência de uma cultura de avaliação legislativa.
Ao contrário do que se escreve, optimística ou ingenuamente, no Relatório Simplex (página 14), o teste reúne todas as condições para uma aplicação rotineira, que o transforme num parente próximo daqueles formulários estatísticos com muitos quadradinhos, que diligentes burocratas preenchem de olhos fechados, copiando o do mês anterior. Só quem nunca fez avaliação de produção legislativa pode, por exemplo, perguntar por um benefício líquido (II-6), ou pela expressão monetária dos encargos administrativos (II-4), ou ainda tabelar custos de oportunidade (II-4).
O relatório governamental não clarifica o tipo de produção legislativa a que se aplicará o teste simplex. Será incompreensível eventual aplicação generalizada a projectos legislativos e regulamentares porque muitos não justificam semelhante avaliação. Como o relatório não aponta nenhum critério qualitativo ou quantitativo para delimitação dos projectos abrangidos (por exemplo, custos superiores a meio milhão de euros ou projectos legislativos com benefícios ou custos excessivamente concentrados), é de recear que exista a intenção de aplicar o teste simplex à esmagadora maioria dos projectos legislativos e regulamentares. Ora, uma tal opção, não só é injustificável numa perspectiva de mero custo-benefício, como contribuirá, seguramente, para banalizar e burocratizar a produção legislativa.
Mais grave do que a forma e o conteúdo do teste simplex é, porém, a confusão reinante sobre a metodologia. Desde logo, o teste simplex não é um exercício de avaliação económica da legislação, não é regulatory impact assessment, nem sequer uma avaliação financeira dos projectos legislativos e administrativos. Quanto muito, e no espírito do modelo belga, é uma medida interna de controle administrativo de custos. Não tem absolutamente nada que ver com as metodologias praticadas no Reino Unido nem na forma, nem no conteúdo, nem nos objectivos, nem na respectiva implementação. Inexplicavelmente, trabalhos anteriores nesta área em Portugal foram absolutamente ignorados. O próprio Governo, através do GPLP do Ministério da Justiça organizou uma conferência internacional sobre o tema em Janeiro de 2005; aí o tema foi amplamente debatido - pelos vistos sem reflexos na selecção e elaboração do instrumento de avaliação legislativa em Portugal.
Como medida de controle administrativo de custos - sem dúvida importante, mas menos ambiciosa do que uma avaliação legislativa -, o teste simplex é excessivamente complicado e detalhado. Se esse é realmente o objectivo do Governo, deveria então o teste ser depurado e resumido às questões que são relevantes para determinar custos de oportunidade administrativos. Não vale a pena matar a mosca atropelando-a com um autocarro!
Não deixa de ser irónico que uma medida que se afirma voltada para a avaliação legislativa prospectiva esteja, ela própria, afectada de uma grave imprevisão quanto aos seus custos e consequências. Fica-nos aquele sabor amargo de pensar que o teste simplex possa, pela forma como foi apresentado e pela confusão metodológica gerada, acabar por constituir-se como barreira dissuasória de uma verdadeira e adequada avaliação prospectiva da legislação. A produção legislativa em Portugal necessita urgentemente de adoptar hábitos de rigor de avaliação, não existindo nenhuma razão objectiva que impeça a sua implementação rápida.
A burocratização da desburocratização
João Caupers e Nuno Garoupa
Professores Catedráticos da Universidade Nova de Lisboa
É extraordinário como velhas máximas vão perdurando no tempo, mesmo quando o respectivo contexto parece repeli-las. Diz-se que governo que quer desburocratizar começa por criar uma comissão (e dotá-la de funcionários, instalações, automóveis, etc., é claro). Vem isto a propósito do teste simplex, incluído no pacote de modernização administrativa.
A ideia, generosa e progressista, seria introduzir entre nós a avaliação de impacto prospectivo na produção legislativa. Depois de anos a batalhar e a trabalhar este tema em múltiplas actividades de investigação e divulgação, pensámos que, finalmente, o Governo reconhecia a necessidade de proceder à racionalização da produção legislativa.
Não havendo entre nós uma cultura de avaliação legislativa, a opção pela introdução de instrumentos técnicos parece-nos um passo muito importante, que apenas peca por tardio. O anúncio de que o modelo utilizado se baseia nas melhores práticas em vigor (página 13 do Relatório Simplex), nomeadamente o modelo belga e os testes de regulatory impact assessment utilizados no Reino Unido, deixou-nos numa expectativa muito agradável. Até sermos confrontados com o teste simplex.
Começa porque o teste simplex, na versão publicada pelo Relatório Simplex (páginas 74 a 89), é tudo menos simples. Trata-se, na verdade, de um exercício pesadamente burocrático, de quinze páginas e mais de quarenta perguntas, numa versão de inquérito de respostas múltiplas, que o Governo justifica pela ausência de uma cultura de avaliação legislativa.
Ao contrário do que se escreve, optimística ou ingenuamente, no Relatório Simplex (página 14), o teste reúne todas as condições para uma aplicação rotineira, que o transforme num parente próximo daqueles formulários estatísticos com muitos quadradinhos, que diligentes burocratas preenchem de olhos fechados, copiando o do mês anterior. Só quem nunca fez avaliação de produção legislativa pode, por exemplo, perguntar por um benefício líquido (II-6), ou pela expressão monetária dos encargos administrativos (II-4), ou ainda tabelar custos de oportunidade (II-4).
O relatório governamental não clarifica o tipo de produção legislativa a que se aplicará o teste simplex. Será incompreensível eventual aplicação generalizada a projectos legislativos e regulamentares porque muitos não justificam semelhante avaliação. Como o relatório não aponta nenhum critério qualitativo ou quantitativo para delimitação dos projectos abrangidos (por exemplo, custos superiores a meio milhão de euros ou projectos legislativos com benefícios ou custos excessivamente concentrados), é de recear que exista a intenção de aplicar o teste simplex à esmagadora maioria dos projectos legislativos e regulamentares. Ora, uma tal opção, não só é injustificável numa perspectiva de mero custo-benefício, como contribuirá, seguramente, para banalizar e burocratizar a produção legislativa.
Mais grave do que a forma e o conteúdo do teste simplex é, porém, a confusão reinante sobre a metodologia. Desde logo, o teste simplex não é um exercício de avaliação económica da legislação, não é regulatory impact assessment, nem sequer uma avaliação financeira dos projectos legislativos e administrativos. Quanto muito, e no espírito do modelo belga, é uma medida interna de controle administrativo de custos. Não tem absolutamente nada que ver com as metodologias praticadas no Reino Unido nem na forma, nem no conteúdo, nem nos objectivos, nem na respectiva implementação. Inexplicavelmente, trabalhos anteriores nesta área em Portugal foram absolutamente ignorados. O próprio Governo, através do GPLP do Ministério da Justiça organizou uma conferência internacional sobre o tema em Janeiro de 2005; aí o tema foi amplamente debatido - pelos vistos sem reflexos na selecção e elaboração do instrumento de avaliação legislativa em Portugal.
Como medida de controle administrativo de custos - sem dúvida importante, mas menos ambiciosa do que uma avaliação legislativa -, o teste simplex é excessivamente complicado e detalhado. Se esse é realmente o objectivo do Governo, deveria então o teste ser depurado e resumido às questões que são relevantes para determinar custos de oportunidade administrativos. Não vale a pena matar a mosca atropelando-a com um autocarro!
Não deixa de ser irónico que uma medida que se afirma voltada para a avaliação legislativa prospectiva esteja, ela própria, afectada de uma grave imprevisão quanto aos seus custos e consequências. Fica-nos aquele sabor amargo de pensar que o teste simplex possa, pela forma como foi apresentado e pela confusão metodológica gerada, acabar por constituir-se como barreira dissuasória de uma verdadeira e adequada avaliação prospectiva da legislação. A produção legislativa em Portugal necessita urgentemente de adoptar hábitos de rigor de avaliação, não existindo nenhuma razão objectiva que impeça a sua implementação rápida.
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