Nuno Garoupa

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quinta-feira, abril 27, 2006

O meu segundo artigo na revista Atlântico (Fev 06)

HOLA MADRID
Revisionismo histórico e o politicamente correcto.

Vive-se em Espanha nestes últimos anos um profundo revisionismo histórico sem paralelo em Portugal. Coincide com datas importantes sem dúvida: os 25 anos da Constituição de 1978, os 30 anos do reinado de Juan Carlos, e os 70 anos do início da guerra civil em Julho de 1936. Mas não podemos escamotear os seus aspectos políticos, à direita e à esquerda, em particular, o conhecido episódio dos papéis de Salamanca (a transferência de Salamanca para Barcelona de certos arquivos históricos que foram retirados da Catalunha depois da guerra civil) bem como o processo referente à reabertura das fossas comuns da guerra civil.

Tanto o complexo de 1898 (perda do império para os Estados Unidos) bem como a guerra civil e o franquismo foram desde logo utilizados pelo PSOE como parte da sua estratégia eleitoral para 2004. Não só colava o PP e Aznar à direita como esvaziava o discurso à esquerda dos socialistas, permitia ainda ao PSOE em várias comunidades históricas reclamar a herança nacionalista (esta desde logo amplamente aumentada pelos governos nacionalistas na Catalunha e no País Basco) que foi supostamente suprimida pelo franquismo (como se tratasse de um movimento de invasores estrangeiros que ocupou a Catalunha e País Basco durante quarenta anos).

No fundo, o PSOE utilizou os temas mais fracturantes da história recente espanhola para alimentar a sua ampla coligação “Todos contra o PP” que muitos bons frutos deu a Zapatero e que lhe permitiu governar até agora sem sobressaltos (para além de ter criado um problema ao PP que só muito tarde se apercebeu, isto é, que para o PP governar tem de ganhar com maioria absoluta em cada autarquia, em cada comunidade, bem como em eleições gerais). Até aqui nada de novo quando comparado com Portugal, bem pelo contrário. Talvez a única surpresa seja o facto do PSOE ter levado quase vinte anos para utilizar de forma corrente os temas históricos, coisa que a esquerda portuguesa faz sem pejo desde os anos 70.

O que o PSOE não esperava, e ainda menos os habituais intelectuais ditos de esquerda, é que na direita surgisse um movimento revisionista de pendor inverso que em Portugal nem se vislumbra. De repente, a esquerda vê-se obrigada a discutir o seu papel no reinado de Alfonso XIII, a República (em particular, o biénio negro de 1934 e 1935), a influência soviética nos anos da guerra civil, o papel dos nacionalismos, etc. Evidentemente que logo a TVE emite programas de história que voltam a impor a interpretação oficial bem como os meios de comunicação afectos ao PSOE fazem boicote aos livros e conferências que promovam outra visão que não a oficial, isto é, a do Governo.

O que assusta os intelectuais de esquerda não é o aparecimento de revisionismo histórico de natureza ideológica contrária ou a consequente manipulação política pelo PP mesmo quando resulta em manifestações de rua impressionantes como foi no caso dos papéis de Salamanca no ano passado. O que realmente assustou o politicamente correcto foi que, em 2005, pelo segundo ano consecutivo, os livros de autores revisionistas de direita venderam muitíssimo mais que as obras literárias dos tradicionais intelectuais de esquerda... Foi o mercado e os consumidores que preocuparam os produtores instalados e convencidos do seu monopólio, aqui como em qualquer outra indústria. É vê-los e ouvi-los reclamar que temos de proteger os consumidores ingénuos que compram esses livros pois não sabem que os autores dessas obras são uns charlatões, que o Estado tem um papel regulador importante através da educação (fica claro que a escola não serve para aprender a pensar mas para papaguear as verdades históricas da esquerda) e do fomento aos livros históricos de serviço público (isto é, os deles), que temos de limitar a capacidade de expressão dos meios de comunicação que fazem eco de versões mentirosas (nomeadamente a COPE), etc.

Eis que chegámos agora ao momento em que muitos daqueles que durante anos utilizaram as suas verdades históricas com fins puramente partidários defendem agora que a política não deve usar a História e vice-versa. Parece-me a mim ser esta uma conclusão séria e prudente, pena que tardia, pois ao abrir a caixa de Pandora como fez o PSOE e Zapatero e ao meter-se nela o PP, muitos sentimentos e ressentimentos que se pensavam ultrapassados reaparecem o que em nada ajuda a Espanha a resolver os seus problemas internos e externos actuais.

A irresponsabilidade dos políticos, à esquerda e à direita, porém foi amplamente ultrapassada pela dos historiadores que, em vez de prosseguir a sua investigação como cientistas sociais, decidiram fazer da História uma arma de arremesso partidário. E aqui entra a nota mais preocupante desde o meu ponto de vista. O facto da corrente revisionista histórica de direita ser feita de fora da universidade, enquanto a de esquerda é feita de dentro da universidade em posição de monopólio (chegamos ao cúmulo de ter um dos autores mais lidos da corrente de direita ter o seu acesso vedado ao campus da Universidade Carlos III de Madrid para aí pronunciar uma conferência, tudo em nome da liberdade e da democracia, a deles claro...).

O facto de uma corrente de pensamento dominar totalmente na universidade é um sinal de falta de pluralidade e de metodologia científica, é um sinal de feudalismo e vassalagem, onde se premeia não a criatividade e a qualidade, mas o seguidismo. Quando um debate histórico tão importante não passa pela universidade e é feito à margem da universidade (bem ao contrário dos Estados Unidos ou do Reino Unido como se viu em muitos casos recentes), isto diz muito da universidade. Muitos defendem-se afirmando que já era sim no tempo de Franco, apenas de pendor inverso. Uma verdade histórica substitui outra versão histórica. Mas isso, no fundo, é admitir que o mundo académico de hoje organiza-se e estrutura-se como ontem, e valoriza a mesma hierarquia de fidelidades e dependências em detrimento do mérito hoje como ontem. Isso sim, em Espanha como em Portugal.

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