O meu oitavo artigo na revista Atlântico (Ago 06)
HOLA MADRID
As memórias do passado
Nuno Garoupa
Continuando a sua política de solidificar o voto de esquerda que lhe permitiu ganhar as eleições de 2004, o presidente Zapatero aprovou antes das férias o anteprojecto de lei da memória histórica que pretende estabelecer medidas de apoio às vítimas da guerra civil e da ditadura. Para além das reparações e reconhecimentos pessoais, e os habituais subsídios, o anteprojecto de lei altera também os símbolos e monumentos públicos herdados da ditadura, com particular referência para o Valle de los Caidos, e introduz uma série de novidades em relação às fossas comuns e reconstrução dos arquivos da guerra.
A nova proposta de lei não contenta as esquerdas mais radicais que queriam de forma explícita excluir as vítimas dos republicanos, rever as sentenças judiciais referentes às condenações por delitos políticos na ditadura e eliminar todos os símbolos do franquismo. Também não contenta os partidos nacionalistas que queriam uma vez mais utilizar os mecanismos legislativos para impor a sua leitura da história, isto é, a fábula de que eles foram as principais vítimas do franquismo (parece que os republicanos de Madrid eram menos rojos que os de Barcelona, quanto ao País Basco é melhor nem falar do papel do PNV na guerra civil). Mas globalmente a lei passará com o apoio destas formações, sendo provável que deixe o PP sozinho uma vez mais.
Neste contexto, parece que nada de novo. Por isso talvez o mais surpreendente da nova lei seja sujeitar uma série de disposições relevantes a um conselho a ser eleito pelo parlamento por uma maioria de 3/5, isto é, por consenso com a direita (no suposto de que o optimismo do PSOE não os leva a pensar que a esquerda terá mais de 60% da representação parlamentar depois das próximas eleições). Evidentemente que a consequência prática desta cláusula é bloquear parcialmente a execução da lei. Ora esta súbita intenção por parte do PSOE de suavizar os termos da lei (em relação ao que estava conversado com os sócios de governação) e de efectivamente introduzir mecanismos que podem bloquear a sua implementação não deixa de ser interessante.
A esquerda espanhola não quer ajustar contas com a guerra civil e com a ditadura mas sim com a transição de 1976. Nesse momento pelas mais diversas razões e segundo interpretações distintas (seja por pragmatismo, por puro oportunismo ou por uma vontade genuína de reconciliação) essas contas não foram saldadas. O que o PSOE e os seus sócios de governo pretendiam agora era rever os termos dessa transição numa altura em que a direita está aparentemente mais debilitada e em que o alinhamento estratégico entre socialistas e nacionalistas está concretizado (uma opção política recusada por González na primeira encarnação socialista de 1982 a 1996).
O que o texto apresentado pelo Governo mostra é que o PSOE não quer assumir totalmente os custos inerentes às medidas que propõe enquanto anuncia que quer repor a justiça que foi interrompida a 18 de Julho de 1936. O problema obviamente não está na direita, bem pelo contrário, uma vez que esta lei permite novamente isolar o PP dos seus potenciais sócios de governo (as direitas nacionalistas da Catalunha e do País Basco).
Parece-me que o que criou problemas ao PSOE foi o potencial efeito contraproducente da reacção da direita, que em vez de ser tíbia e complexada (como é habitual na direita portuguesa por exemplo), tem sido bastante barulhenta (o revisionismo histórico está na moda e tem bastante audiência). Ora esta reacção recriou antigas divisões históricas, relembrou velhas clivagens, demonstrou que não há nenhuma reconciliação, acentuou velhos mitos de ambos os lados da contenda, e reforçou a percepção no centro político de que estas feridas não devem nem podem ser reabertas. Por outras palavras, tal como na transição, o centro político no fundo pensa que a melhor coisa era não falar do assunto e deixar o tema para os historiadores (aliás confirmado nas sondagens e estudos de opinião). Mas é do eleitorado moderado que o PSOE necessita para voltar a ganhar as eleições. E se o assunto foi reaberto a responsabilidade cabe ao Governo.
O anteprojecto de lei da memória histórica é o melhor exemplo da forma de fazer política de Zapatero. E por isso, não sendo um estadista, é um génio político. Cumpre em espírito o que promete à esquerda, mas pragmaticamente limita a própria lei para, apaziguando a direita, não defraudar o centro. Que o PP vote contra a lei não é uma dor de cabeça para o PSOE. Agora que o centro político ache que a lei PSOE mostra que a guerra civil e que a ditadura continuam a dividir os espanhóis, isso sim pode ser um problema para quem quer ter a maioria absoluta nas próximas eleições.
As memórias do passado
Nuno Garoupa
Continuando a sua política de solidificar o voto de esquerda que lhe permitiu ganhar as eleições de 2004, o presidente Zapatero aprovou antes das férias o anteprojecto de lei da memória histórica que pretende estabelecer medidas de apoio às vítimas da guerra civil e da ditadura. Para além das reparações e reconhecimentos pessoais, e os habituais subsídios, o anteprojecto de lei altera também os símbolos e monumentos públicos herdados da ditadura, com particular referência para o Valle de los Caidos, e introduz uma série de novidades em relação às fossas comuns e reconstrução dos arquivos da guerra.
A nova proposta de lei não contenta as esquerdas mais radicais que queriam de forma explícita excluir as vítimas dos republicanos, rever as sentenças judiciais referentes às condenações por delitos políticos na ditadura e eliminar todos os símbolos do franquismo. Também não contenta os partidos nacionalistas que queriam uma vez mais utilizar os mecanismos legislativos para impor a sua leitura da história, isto é, a fábula de que eles foram as principais vítimas do franquismo (parece que os republicanos de Madrid eram menos rojos que os de Barcelona, quanto ao País Basco é melhor nem falar do papel do PNV na guerra civil). Mas globalmente a lei passará com o apoio destas formações, sendo provável que deixe o PP sozinho uma vez mais.
Neste contexto, parece que nada de novo. Por isso talvez o mais surpreendente da nova lei seja sujeitar uma série de disposições relevantes a um conselho a ser eleito pelo parlamento por uma maioria de 3/5, isto é, por consenso com a direita (no suposto de que o optimismo do PSOE não os leva a pensar que a esquerda terá mais de 60% da representação parlamentar depois das próximas eleições). Evidentemente que a consequência prática desta cláusula é bloquear parcialmente a execução da lei. Ora esta súbita intenção por parte do PSOE de suavizar os termos da lei (em relação ao que estava conversado com os sócios de governação) e de efectivamente introduzir mecanismos que podem bloquear a sua implementação não deixa de ser interessante.
A esquerda espanhola não quer ajustar contas com a guerra civil e com a ditadura mas sim com a transição de 1976. Nesse momento pelas mais diversas razões e segundo interpretações distintas (seja por pragmatismo, por puro oportunismo ou por uma vontade genuína de reconciliação) essas contas não foram saldadas. O que o PSOE e os seus sócios de governo pretendiam agora era rever os termos dessa transição numa altura em que a direita está aparentemente mais debilitada e em que o alinhamento estratégico entre socialistas e nacionalistas está concretizado (uma opção política recusada por González na primeira encarnação socialista de 1982 a 1996).
O que o texto apresentado pelo Governo mostra é que o PSOE não quer assumir totalmente os custos inerentes às medidas que propõe enquanto anuncia que quer repor a justiça que foi interrompida a 18 de Julho de 1936. O problema obviamente não está na direita, bem pelo contrário, uma vez que esta lei permite novamente isolar o PP dos seus potenciais sócios de governo (as direitas nacionalistas da Catalunha e do País Basco).
Parece-me que o que criou problemas ao PSOE foi o potencial efeito contraproducente da reacção da direita, que em vez de ser tíbia e complexada (como é habitual na direita portuguesa por exemplo), tem sido bastante barulhenta (o revisionismo histórico está na moda e tem bastante audiência). Ora esta reacção recriou antigas divisões históricas, relembrou velhas clivagens, demonstrou que não há nenhuma reconciliação, acentuou velhos mitos de ambos os lados da contenda, e reforçou a percepção no centro político de que estas feridas não devem nem podem ser reabertas. Por outras palavras, tal como na transição, o centro político no fundo pensa que a melhor coisa era não falar do assunto e deixar o tema para os historiadores (aliás confirmado nas sondagens e estudos de opinião). Mas é do eleitorado moderado que o PSOE necessita para voltar a ganhar as eleições. E se o assunto foi reaberto a responsabilidade cabe ao Governo.
O anteprojecto de lei da memória histórica é o melhor exemplo da forma de fazer política de Zapatero. E por isso, não sendo um estadista, é um génio político. Cumpre em espírito o que promete à esquerda, mas pragmaticamente limita a própria lei para, apaziguando a direita, não defraudar o centro. Que o PP vote contra a lei não é uma dor de cabeça para o PSOE. Agora que o centro político ache que a lei PSOE mostra que a guerra civil e que a ditadura continuam a dividir os espanhóis, isso sim pode ser um problema para quem quer ter a maioria absoluta nas próximas eleições.
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