Nuno Garoupa

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sexta-feira, outubro 27, 2006

Artigo na Revista Dia D (27 Out 06)

O Acaso Não Faz os Grandes Líderes
Nuno Garoupa

O tempo de Tony Blair chegou ao fim e um novo ciclo político começará na Grã-Bretanha. Aos politicólogos e aos historiadores competirá fazer uma análise desapaixonada dos dez anos de governo Blair. O que não oferece dúvidas é que a Grã-Bretanha em trinta anos produziu dois líderes com uma craveira e uma genialidade ímpar. Tony Blair e Margaret Thatcher são referências obrigatórias da política, da sociologia, da economia e da história britânica, europeia e mundial.

Não falo do óbvio, isto é, da influência que tiveram nas políticas interna e externa (incluindo europeia) derivada da posição do primeiro-ministro inglês na arquitectura constitucional britânica e da importância da Grã-Bretanha no mundo geopolítico de hoje. Falo sim do impacto transcendental que tiveram nas profundíssimas transformações da sociedade britânica (sem paralelo na Europa nos últimos trinta anos); da influência ideológica que exerceram na direita (o desenvolvimento do pensamento liberal em detrimento do conservadorismo tradicional) e na esquerda (na criação da terceira via que definitivamente enterrou o velho socialismo democrático) em toda a Europa; na construção de novas políticas públicas e do Estado-regulador na saúde, na educação, na justiça, na economia que contra tradições seculares teve uma repercussão enorme deste lado do Canal da Mancha.

Não pode ser apenas coincidência que o mesmo país tenha produzido dois líderes deste nível sem paralelo na Europa em apenas uma geração. Mesmo à nossa reduzida dimensão e com os condicionalismos históricos que tivemos, a nossa democracia foi incapaz de produzir um líder com o calibre intelectual e ideológico de Thatcher ou Blair. Não é, não pode ser obra do acaso.

Curiosamente quer Thatcher quer Blair são produtos do aparelho partidário, foram ascendendo pela hierarquia dos respectivos partidos da forma que é habitual, não tiveram qualquer experiência profissional relevante fora da vida política. Nada de “salvadores da pátria”, de políticos que não são políticos, de entradas em directo para a liderança partidária ou para o Conselho de Ministros. Thatcher e Blair são daqueles políticos profissionais abominados pelos nossos intelectuais, dos que colaram cartazes, foram derrotados em eleições locais, tiveram de ir a reuniões das concelhias, enfim tiveram de passar por tudo isso que em Portugal é visto de forma negativa e pejorativa como actividades do aparelho partidário.

O problema não está pois em ter políticos profissionais nas lideranças partidárias (como alguns articulistas escrevem de vez em quando), mas nos aparelhos partidários que temos. É que os aparelhos dos partidos britânicos pelas suas tradições, regras, democraticidade, descentralização por um lado, e a supremacia do parlamentarismo (a liderança está sujeita ao grupo parlamentar e não o contrário como em Portugal), por outro, conjugam-se num sistema mais aberto, mais competitivo e mais dinâmico. As catarses dos conservadores e dos trabalhistas na oposição que eventualmente levaram Thatcher e Blair ao poder anos mais tarde não têm qualquer semelhança com as tímidas renovações que se fizeram no PS ou no PSD. No fundo, os aparelhos políticos em Portugal sofrem do mesmo problema que muitos sectores da economia portuguesa, isto é, oligopólios dominantes com as habituais consequências negativas na inovação e na qualidade do produto que vendem. Só que no caso dos partidos políticos o produto final é a democracia.

Não pode haver democracia de qualidade sem think-tanks. Quer Thatcher quer Blair tiveram um suporte ideológico de alto capital humano que só foi possível graças aos múltiplos institutos que estudaram, analisaram e estruturaram um programa político de médio e longo prazo. Nada disto existe ou é feito em Portugal. Pura e simplesmente não temos think-tanks (o que para aí usa esse nome deveria ser castigado por publicidade enganosa). Penso que a razão mais básica para isso é o facto dos poderes económicos e sociais em Portugal estarem demasiado preocupados com os seus interesses de curtíssimo prazo para financiar projectos a longo prazo. O resultado está à vista: as elites partidárias não pecam por excesso de capital humano, os programas eleitorais são bastante medíocres, e cada ministro tem de começar do zero quando é nomeado.

Que dificilmente o nosso sistema político-partidário produzirá um Blair ou uma Thatcher é algo que temos de aceitar... Mas que tenhamos de oscilar entre um Major e um Callaghan (os típicos líderes cinzentos em fim de festa), ou um Wilson e um Heath (ambos estimáveis reformistas à esquerda e à direita respectivamente como tem havido em Portugal mas que não fizeram história) é uma fatalidade dos aparelhos partidários fechados que não promovem qualidade e inovação em políticas públicas.

quinta-feira, outubro 26, 2006

O Pacto da Injustiça (Revista Atlântico)

O PACTO DA JUSTIÇA: UMA OPORTUNIDADE PERDIDA

Chegou a reforma da justiça. Já não era sem tempo pensámos todos. O efeito travão da Justiça no nosso crescimento e desenvolvimento económico e social é hoje um dado assente. Os rankings do Banco Mundial e do Forum Económico Mundial mostram que o enquadramento institucional, e a Justiça em particular, são hoje um factor de vantagem competitiva no mundo globalizado. Portugal está em séria desvantagem e só uma reforma profunda, prolongada e bem direccionada pode ajudar a resolver o problema. Por outro lado, os portugueses ouvem falar de uma Justiça célere e justa mas não passa de uma miragem frente à congestão dos tribunais, ou à ineficácia e impunidade que a comunicação social mostra todos os dias. Depois prolongam-se no tempo os sinais de corporativismo e paroquialismo lactente na Justiça portuguesa. Temos todos consciência de que tudo foi pensado para um país diferente, de outra época, e muito pouco foi solucionado quando os problemas começaram a despontar. O amadorismo e o atabalhoamento dos pequenos remendos feitos nos últimos trinta anos apenas contribuíram para aprofundar a crise da Justiça (não esquecemos que ainda em 2001 e 2002 havia quem opinasse que não havia nenhuma crise na Justiça).

A profundidade e extensão necessária bem como o efeito prolongado e sustentável da reforma da Justiça exigem um pacto entre os partidos ou maiorias governamentais para assegurar politicamente os resultados. Por isso o pacto entre o PS e o PSD era necessário e imprescindível, não tanto pelo consenso do bloco central ou do chamado centrão, mas para evitar pequenas reformas e contra-reformas que acabam por descredibilizar a Justiça e aprofundar a crise (como aconteceu nos últimos trinta anos).

Infelizmente penso que o pacto para a Justiça do PS e do PSD não dá corpo à reforma que Portugal precisa. Pode ser prematuro, dado que o documento anunciado tem alguns pontos positivos e é demasiado abstracto. Muito fica por ver ou dizer. Mas temo que o pacto da Justiça seja um equívoco que só prejudicará o país no longo prazo, não alterará substancialmente nada, e hipotecou um conjunto de políticas que verdadeiramente poderiam fazer a diferença.

Muitos comentadores estiveram muito preocupados com os ganhos políticos. Podem ter ganho o PS e o primeiro-ministro, o PSD e o líder da oposição, o Presidente da República que aparentemente impulsionou o pacto, o Ministro da Justiça que estava numa posição débil, o CDS/PP que afinal pensa ser o pai de muitas das ideias do pacto mas não foi chamado a assumir essa paternidade, até os comentaristas e articulistas que não pararam de elogiar o pacto (muitos concerteza não leram o documento), enfim todos aqueles que se agarraram ao pacto como a solução para os problemas da Justiça em Portugal. Mas perdeu Portugal, perderam as próximas gerações, perdemos todos aqueles que acreditamos que é possível ter uma Justiça justa, eficaz, célere e eficiente.

Basta ler com cuidado o documento assinado pelo PS e pelo PSD para verificar que não há reforma da Justiça, com os articulistas panegíricos anunciaram, o que temos são reformas na Justiça. Portanto, não há uma mudança de paradigma ou modelo, como eu defendo, mas apenas a readequação do actual modelo aos problemas que os políticos não souberam ou não puderam resolver no passado.

Quanto ao conteúdo, aquilo que vemos é tudo muito processual e muito formal, muito pouco sistémico na administração e organização ou na formação e qualificação dos profissionais da Justiça, e quase nada na governança do sistema. Tem aspectos positivos que não são propriamente novidade, mas as novidades são verdadeiramente deprimentes. A minha opinião é de que o problema da Justiça em Portugal não é uma questão de processo civil ou penal, não é uma questão formal ou apenas de organização, mas antes de tudo o resultado do insuficiente interesse do Estado pela formação e qualificação das magistraturas bem como na governança adequada do sistema. E nesta perspectiva o pacto adianta mesmo muito pouco.

Comecemos pelas reformas de natureza penal. Para além de alterações de duvidoso êxito dado o fracasso e os problemas encontrados noutros países que evidentemente foram ignorados ou desconsiderados pela unidade de missão (responsabilidade penal das pessoas colectivas, violência doméstica, mediação penal), toda a reforma processual resulta essencialmente do caso Casa Pia como aliás reconhecia o Ministro da Justiça no dia seguinte à assinatura do pacto (segredo de justiça, intercepções telefónicas, prisão preventiva, medidas de coacção). Por outras palavras, as reformas de natureza penal não são o produto de uma estratégia, de uma requalificação ou de uma alteração do modelo, mas sim de um processo mediático que afectou o bem-estar de uns tantos. Por isso mesmo, a adversarialização do sistema, a introdução do plea-bargaining, o reforço da accountability do Ministério Público nem sequer se toca.

Na área cível, limita-se a reformas dos recursos cíveis claramente insuficientes e que não afectam o grosso do problema, nomeadamente não alteram significativamente os incentivos para o uso dilatório desses recursos bem como não aumentam o controle por parte dos tribunais superiores dos chamadas dockets (processos entrados).

Sobre as custas judiciais (para além da demagogia da justiça acessível para todos e a rejeição do princípio do utilizador-pagador já anunciados pelo Governo), a alocação de custas entre as partes (com reformas semelhantes ao relatório Wolf de 1997 no Reino Unido), o desenvolvimento de regimes processuais diferenciados para tipos de acção, as chamadas class actions, ou o litígio de massas, nada de nada.

Reforma da acção executiva, essencialmente mais do mesmo. Será a segunda grandíssima e definitiva reforma desde 2002. Será a última? Suspeito que não.

Vejamos então as grandes novidades. A revisão do mapa judiciário é confusa, não tem conta as necessidades processuais (tudo o que se viu nesta matéria até agora é de um amadorismo assustador, sem qualquer modelização ou consideração por taxas de congestão, clearance ou backlog). Na verdade, mantém intacta a origem do problema – o monopólio espacial – que impede um litigante de utilizar um tribunal mais eficaz ou sem backlog através da imposição de critérios formais (residência, registo comercial, etc.) ou funcionais em detrimento da procura e oferta judicial (o que num país com a nossa dimensão geográfica e as novas tecnologias é aberrante).

Para além de tudo isto, o pacto e os seus comentadores panegíricos confundem as respostas extrajudiciais (mas subvencionados e geridos pelo Estado pelo que sofrem de muitos dos problemas habituais) com os mecanismos alternativos de resolução de conflitos (os ADRs). Continuamos a pensar que os julgados de paz e a mediação, a resolução alternativa dos litígios patrocinada pelo Estado, são a solução para a celeridade da justiça, esquecendo a segurança jurídica e os efeitos estratégicos assimétricos. Levamos quase dez anos nesta conversa e ainda não perceberam que, sendo uma parte importante, não são a solução.

Finalmente, não se repensam as especializações dos tribunais. Aumenta-se o número dos tribunais de família e das pequenas instâncias sem qualquer tipo de preocupação com outras funções sociais. Por exemplo, nada de diz sobre os tribunais de comércio, os tribunais marítimos ou os tribunais do trabalho. Mantém-se a separação entre os tribunais superiores judiciais e os tribunais superiores administrativos e fiscais numa aberração sem qualquer sentido num modelo de Estado-regulador. Sobre o excessivo número de juizes conselheiros também pouco se adianta, nem mesmo sobre a possível desvinculação entre o nível hierárquico dos tribunais e o grau de senioridade dos magistrados.

No acesso à magistratura, além do óbvio (separação das magistraturas) e do que é habitual (abertura a juristas de mérito), a grande novidade são as quotas. Pretende-se romper o funcionalismo corporativo da magistratura (que evidentemente dilui a possibilidade real dos juristas de mérito acederem à magistratura como se viu nos últimos anos). Mas o processo de concurso é puramente funcional. Também no mundo académico a promoção é por provas públicas e estamos onde estamos em tema de méritos (gosto da inclusão dos professores de Direito na promoção aos Tribunais da Relação e ao STJ – deve ser porque as faculdades de Direito em Portugal são o modelo de meritocracia que se pretende para a Justiça – mas não se entende a exclusão dos advogados e da sociedade em geral). Parece-me claro que sujeitar a progressão dos juizes aos tribunais superiores a provas públicas do estilo que sabemos não resolve nada e pode agravar muitos problemas.

Já a reserva de quotas para juristas de mérito parece-me um mau começo para um objectivo saudável, e temo que os tribunais superiores se transformem em plataformas flexíveis de políticos em fim ou em começo de carreira tal como já é o Tribunal Constitucional (muito possivelmente teremos como em Espanha os chamados juizes da 4a convocatória totalmente identificados com o partido no poder).

Finalmente a autonomia e o regime de permanência dos vogais do Conselho Superior da Magistratura (porquê só o CSM e não o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e o Conselho Superior do Ministério Público é um mistério, aliás teria sido um bom momento para fundir estes órgãos todos com ganhos de escala e operacionalidade). Veremos se há coragem política de transformar o CSM numa versão do espanhol Consejo General del Poder Judicial (com elevados custos para os políticos a médio prazo). Mas nada se diz de avaliação ou sobre reformas do autogoverno. A autonomia administrativa e financeira de tantos organismos do Estado só conduziu ao desperdício e à pequena corrupção (uma vez mais o mundo universitário é um excelente exemplo). Deste ponto de vista, o pacto da Justiça é claramente insatisfatório e insuficiente.

O pacto da Justiça é uma verdadeira desilusão (mas uma excelente operação de marketing político) a que oportunamente se juntou a nomeação do novo Procurador-Geral da República e a eleição do novo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Não conheço o novo PGR mas tudo indica que pode ser a escolha certa e que rompa com a situação catastrófica que o actual PGR deixa em herança (apesar de ter recebido os mesmos elogios e vaticínios que o seu sucessor). Mas mais interessante que o nome escolhido é ver como as questões que me parecem fundamentais foram uma vez mais escamoteadas, escondidas, mostrando que o pacto da Justiça toca no acessório mas não mexe no fundo da questão.

Desde logo o processo de escolha do PGR não é transparente nem procura valorizar os méritos dos possíveis candidatos, mas é próprio de um regime opaco, onde tudo se passa em gabinetes e em conversas informais de bastidores, onde os partidos políticos são consultados ex ante mas não podem avaliar ex post, onde se privilegiam os silêncios e as cumplicidades em vez da clarividência das ideias e dos projectos. Tudo o que se leu e ou ouviu foi meramente sobre o perfil adequado e depois sobre a pessoa escolhida (e os não escolhidos), nada sobre para que serve a PGR, como reformar o Ministério Público, como reforçar a independência mas forçando a necessária accountability, etc.

Ao escolhido pelo Governo e ungido pelo Presidente da República não se ouve nem se conhecem, e muito menos avaliam, as ideias nem os projectos para o mandato de seis anos que se inicia, e ainda menos o que acha ou deixa de achar sobre as mais variadas questões sociais importantes e relevantes para o seu mandato (por exemplo, IVG, corrupção, etc.) nos foruns adequados (só pode ser a Assembleia da República) mas apenas um eco distante na comunicação social (não há audição parlamentar, não tem de elaborar um programa estratégico para o seu mandato, etc.).
Quanto à eleição do Presidente do STJ, o interesse e a cobertura que foi dado mostrou bem os problemas de governança que temos na Justiça em Portugal, secretismo, falta de transparência, ausência de accountability externa, conflito de interesses, corporativismo por um lado, e desinteresse, ignorância, ausência de compreensão do que está em jogo por outro. Parece-me totalmente errado fulanizar a questão como alguns tentaram, mas é no mínimo preocupante que seja possível a quem no CSM nomeia para o STJ depois ser eleito presidente do STJ (parece-me evidente que o vice-presidente do CSM não pode mais tarde ser presidente do STJ).

Todo o processo de escolha do novo PGR bem como da eleição do Presidente do STJ mostraram bem o que está mal na estrutura e na filosofia subjacente à Justiça portuguesa. Pode até ser que os escolhidos sejam realmente as melhores pessoas para esses lugares (seria óptimo que assim fosse). Mas tudo se concentra nos aspectos laterais e fulanizados. Ora isso precisamente mostra o que está errado no pacto da Justiça, concentra-se no acessório e evita o fundamental, apresenta-se como neutral e consensual na forma, na estrutura ou na filosofia do pensamento subjacente à Justiça que na verdade nos levou até onde estamos hoje. No fundo, o PS e o PSD, e muitos portugueses, pensam que o problema é conjuntural e não estrutural. Se por milagre encontrarmos um D. Sebastião para a PGR e um grupo de cavaleiros de Camelot para o STJ e para o CSM fica tudo resolvido.

Para mim a crítica mais devastadora ao pacto da Justiça tem de ir para a direita, para o PSD, para o CDS/PP e para o Compromisso Portugal. Todos eles mais ou menos se reviram na substância do pacto, eventualmente com algumas críticas metodológicas (do CDS/PP por ter sido excluído) ou de conteúdo (do Compromisso Portugal), mas nada de fundo. Como disseram alguns dos líderes e fazedores de opinião da direita portuguesa, há pacto na Justiça mas não na Segurança Social, por exemplo, porque aqui existem fortes divergências ideológicas. Como se na reforma da Justiça não houvesse ideologia. O mais triste e desastroso é que a direita portuguesa ainda não percebeu que também na Justiça existem modelos de pensamento, e que o modelo português vigente é caduco e desajustado na Justiça como nas outras áreas do Estado (já tínhamos sido confrontados com esta desilusão nos três anos que o PSD e o CDS governaram).

Não é com estas reformas anunciadas que vamos ter uma justiça célere e superar o travão económico. Não há nenhuma reforma estrutural. Não há nenhuma mudança de paradigma nem qualificação da Justiça. Na verdade, nada de novo e significativo sairá deste pacto. Resta lamentar que a responsabilidade política do PS, do PSD e do Presidente da República (que na minha opinião em má hora se deixou associar a este pacto) neste desastre serão diluídas nos obstáculos corporativos e no esquecimento dos portugueses. Quando voltarmos a discutir a reforma da Justiça lá para 2010 ninguém se lembrará de todos aqueles protagonistas que disseram que esta era a sua reforma porque no fundo são os mesmos das grandes reformas anteriores (das grandes reformas de Laborinho Lúcio, das.pequenas reformas de Vera Jardim, e dos pequenos passos de António Costa e de Celeste Cardona). Nada mudou.

O meu décimo artigo na Revista Atlântico (Out 06)

HOLA MADRID
A verdadeira esquerda
Nuno Garoupa

A direita portuguesa idealiza o PP espanhol como o modelo de grande partido da direita que Portugal não tem. No último número da revista procurei mostrar que estão completamente arredados da realidade aqueles que assim pensam, confundem a realidade espanhola com os seus desejos. Curiosamente na esquerda acontece exactamente o mesmo. O PSOE e Zapatero são o que o PS e Sócrates não conseguem ser, a esquerda fracturante e moderna (ou pós-moderna) que tem uma agenda social progressista e humilha continuamente as bases sociais da direita que se revelam incapazes de acompanhar o desenvolvimento da sociedade espanhola tal como concebida pela esquerda. Zapatero é o líder da esquerda que falta a Portugal, Sócrates está demasiado comprometido com o centro e parece tão de direita que não ofende as bases sociais dessa direita conservadora e católica. Também aqui acho que muitos comentadores estão enganados.

Sócrates e Zapatero são na minha perspectiva muito semelhantes. Ambos são produtos do aparelho partidário, são políticos profissionais sem vida profissional ou cidadania fora do seu partido. É certo que ambos ascenderam às lideranças partidárias pela mão de líderes consagrados (Guterres e González respectivamente). Têm capacidade de congregar e federar interesses dentro do partido, de converter as habituais divergências internas em aspectos de somenos importância não só pelo carisma indiscutível que têm mas também pela promessa de regresso ao poder e de manter esse poder (um bálsamo para qualquer partido na oposição depois de passar anos no poder). Pode até ser que estes dois homens tenham personalidades diferente, mas o percurso partidário e o pragmatismo que tiveram para chegar à liderança e mantê-la é muito semelhante.

Precisamente Sócrates e Zapatero são essencialmente pragmáticos. A tese de Zapatero como ideólogo frente a um Sócrates do sentido comum só pode ter origem em observadores desatentos. Em condições muito diferentes, ambos têm políticas económicas e orçamentais ditas de direita à mistura com umas políticas sociais que essencialmente evitam reformas profundas no Estado-providência. Essa mistura é o melhor seguro de vida, em Espanha porque a economia cresce (logo o PSOE não quer ter a responsabilidade de inverter essa tendência ainda que um segundo mandato vá ser muito mais complicado pois a ausência dessas reformas provocou uma acelerada perda de competitividade nos últimos cinco anos) e em Portugal porque a economia não cresce (logo o PS não tem outra alternativa senão gerir conjunturalmente a economia tentando não abdicar demasiado das suas políticas sociais). Mas nem Sócrates nem Zapatero fizeram (e jamais farão) qualquer reforma estruturante na Administração Pública, na Justiça ou na Educação. A Saúde é uma excepção em Espanha porque é praticamente competência exclusiva dos governos autónomos.

Onde a esquerda portuguesa vê as grandes diferenças é em matérias de regulação social (casamento homossexual, identidade sexual, aborto, quotas para as mulheres), na hostilização declarada à Igreja Católica e aos valores conservadores (ensino religioso, não presença da hierarquia católica nas cerimónias do Estado e vice-versa) e na política externa agressivamente anti-americana (incluindo as relações privilegiadas com o Irão ou a Síria, a Aliança das Civilizações). Porém estas diferenças importantes e significativas resultam mais uma vez do pragmatismo dos líderes socialistas e não de ideologia ou de adesão a qualquer pós-modernismo de esquerda.

A maioria absoluta de Sócrates depende dos votantes de centro a quem uma regulação social fracturante ou uma política externa ostensivamente anti-americana pode não agradar. A incapacidade do PSD e do CDS para fazer oposição abre perspectivas de Sócrates poder atrair uma parte importante do eleitorado tradicional da direita. Assim, Sócrates tem de governar ao centro, fingindo que até implementa políticas de direita (uma mentira muitas vezes repetida na comunicação social). De vez em quando tem de sacar de um tema de regulação social (por exemplo, aborto) para mostrar as suas credenciais de esquerda moderna e conter qualquer possível crescimento eleitoral do PCP ou do BE. As sondagens mostram que a receita funciona.

Já Zapatero tem o problema inversa. A sua eleição resultou do esvaziamento eleitoral dos comunistas (agora com apenas 5 deputados num congresso de 350) e da convergência parlamentar com as esquerdas nacionalistas (a ERC da Catalunha, o BNG da Galiza). Tendo em conta as circunstâncias em que se realizaram as eleições de 14 de Março de 2004, é também pouco provável que Zapatero possa canibalizar significativamente o eleitorado do PP. O próprio PP está muito longe de estar em crise tudo indicando que consolidou o seu eleitorado natural. Assim, Zapatero tem de governar à esquerda o que não sendo verdade nas políticas económicas, tem de repercutir-se na regulação social e na política externa. Qualquer viragem à direita nesta matérias só causará perdas eleitorais significativas sem ganhos óbvios.

Zapatero ganhou em 2004 porque conseguiu reduzir o abstencionismo de esquerda e esvaziar os comunistas; Sócrates ganhou em 2005 derrotando o PSD e atraindo o centro-direita; Zapatero ganhou à esquerda e Sócrates ganhou à direita. Evidentemente Zapatero tem de governar à esquerda e Sócrates tem de governar à direita para manter o poder. Ambos governam como governam por necessidade e por pragmatismo, e não por ideologia. Fosse Sócrates líder do PSOE e seria um Zapatero; fosse Zapatero líder do PS e seria um Sócrates.

PS A visita do Presidente da República, Cavaco Silva, a Espanha no fim de Setembro teve o impacto que se esperava na sociedade espanhola e na promoção de Portugal, isto é, nulo. Realmente ainda há quem pensa neste mundo globalizado que a promoção económica e comercial de um país se faz entre chefes de Estado!

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